O ano é 2017 e os desenvolvedores de produtos da Nike acabam de finalizar as primeiras versões dos modelos pensados por Virgil Abloh em seu projeto “The Ten” onde a ideia é colaborar com a marca lendária criada por Phil Knight e recriar dez modelos clássicos da Nike. Um dos modelos foi Air Jordan 1 (talvez o mais icônico da marca) e o resultado parecia mal acabado, com material interno exposto e costuras que não finalizadas. Ninguém parecia entender, nem os designers que trabalharam com Virgil, nem o time de produção. No meio de reações hesitantes, uma coisa era certa: ele estava redefinindo clássicos de uma forma que ajudou a consolidar a Nike no posto mais alto entre as marcas de sportswear no final da década de 2010s. Esta publicação é baseada no livro “Sneaker of The Year: The Best since 1985” da revista Complex.
Nike no topo
Desde 2017 a Nike aumentou seu faturamento em quase 30% enquanto suas principais concorrentes diminuíram suas receitas no mesmo período. No ano da pandemia, foi a única marca do segmento que apresentou um crescimento. O grupo Adidas, por exemplo, havia faturado quase US$15 bi em 2017, caiu para US$13.7 bi em 2020. Dados contemplando apenas a linha de footwear das marcas. E, sem dúvida, Virgil Abloh tem um impacto nesse desempenho da Nike e veremos o porquê.
“Hypado”
O sucesso das releituras de clássicos feitos pelo artista que vai muito além de um designer (Virgil Abloh acumula diversas funções desde CEO da sua marca Off-White até DJ) se deve bastante ao equilíbrio entre sua reverência por produtos clássicos e o apetite de reinterpretá-los. E isso significa deixar os fabricantes confusos e fazê-los repensar sobre o que um Air Jordan deve ser e parecer. E ainda além: desafiar os sneakerheads que acreditam que o presente e o futuro não têm nada a acrescentar em modelos clássicos e sagrados como o próprio Air Jordan 1. A ideia de fazer colaborações já estava um tanto saturada em meados de 2020. Estávamos na era do “Todo mundo x Todas as coisas”. Por isso, para essa collab ser bem sucedida teria que ser com alguém do calibre de Virgil Abloh que poderia acrescentar algo que a Nike ou a Jordan Brand nunca poderiam fazer por conta própria. E ele o fez. Com um olhar cauteloso e respeito pelos modelos que interveio (afinal, Abloh cresceu no subúrbio de Chicago em tempos que Michael Jordan estava no auge nos Bulls) ele conseguiu acrescentar seu twist e dar uma cara única a essas releituras.
Importante dizer que os tênis da collab Off-White x Nike têm um preço de revenda altíssimo, uma demanda absurda e faz parte inevitavelmente do mundo dos “hypebeasts” (consumidores frenéticos de produtos que estão em alta no mundo do streetwear). Um bom exemplo é o Off-White x Air Jordan 1 que tinha um preço de revenda na data do seu lançamento (US$2500) 13 vezes maior do que o preço de venda (US$190).
Off-White x Air Jordan V
Para ilustrar melhor o que foi uma das maiores colaborações no mundo da moda, vou falar sobre um modelo específico: a releitura feita por Virgil Abloh do Air Jordan V (eleito pela Complex o tênis do ano em 2020).
Em 1990 foi lançado o modelo que era o quinto da assinatura Air Jordan desenhado por Tinker Hatfield (lendário designer da Nike - assista seu episódio da série Abstract: The Art of Design). E Abloh o recriou de forma única. Parecia ser um tênis que saiu de uma cápsula do tempo e envelheceu com perfeição como grandes vinhos nos últimos 30 anos. Virgil criou solas amareladas (imitando o envelhecimento natural) fazendo parecer que o tênis saiu de uma longa hibernação no guarda roupa de um sneakerhead. E o engraçado é que na época do lançamento original, a Nike investiu muito esforço e dinheiro para chegar em uma solução que fizesse o solado permanecer translúcido e não amarelasse com o passar do tempo. Virgil também abriu buracos em formato circular no cabedal do tênis com uma fina película transparente por trás invocando a magia da tecnologia “Air” nas bolhas aparentes na entressola (uma das maiores revoluções de design da história da marca). Ele ainda foi além: no lançamento do Off White x Air Jordan V, ele postou um vídeo fazendo os buracos com uma faca no tênis e encorajando os sortudos que conseguissem um par do modelo a fazerem o mesmo e terminar o “trabalho” em casa. Ele não só teve a audácia de refazer um tênis por muitos considerado perfeito, mas estimulou seus seguidores a rasgarem sua releitura com uma faca.
Seria tudo isso uma heresia? O designer de Chicago Don C nos ajuda a entender um pouco sobre a criação de Virgil Abloh:
“Estou tão incorporado à cultura de Chicago que talvez seja uma heresia. Isso é quase uma religião para mim. Se você é uma pessoa religiosa, você não vai usar uma camiseta de Jesus Cristo ao avesso. Embora possa parecer legal, você só não vai fazer isso. Esse obstáculo é o que me faz ser um designer não tão bom quanto Virgil Abloh. Ele é bem sucedido porque ele é menos preciosista com seus ídolos. Isso o permite pegar um Air Jordan e refazê-lo com um olhar moderno.”
Essa collab coloca a Jordan Brand - uma marca focada em nostálgicos modelos retrô - em uma posição delicada quando ousadias como essa são feitas em um modelo icônico. No entanto, Gemo Wong (designer chefe de projetos especiais da Jordan Brand), explica que o processo foi bem cauteloso, com muita negociação e o mais importante: teve o aval de Michael Jordan. Se ele liberou, quem somos nós para colocar nos colocar contra a releitura em nome da tradição?
Explicando: Virgil Abloh
Assim como Tinker Hatfield, Virgil Abloh também não tinha um background no design de moda e não era “sneakerhead”. Ambos vieram da arquitetura e isso os qualificam a olhar de forma diferente para o projeto de um tênis. Um exemplo clássico disso é a criação do Air Max 1 por Hatfield inspirado no Centre Pompidou em Paris. Virgil ainda vive uma transição (que possivelmente será eterna) de carreira. Parece que a cada trimestre ele está envolvido em uma nova atividade. Com uma agenda totalmente tomada (por recomendação médica teve que diminuir o ritmo de viagens) ele é o diretor criativo da linha masculina da Louis Vuitton e fez colaborações para IKEA, Heron Preston, Levi’s, Moncler, Takashi Murakami, entre várias outras marcas de diversos artigos. Segundo Don C, Virgil criou um “código de desenho” o que o permitiu fazer uma das mais “hypadas” coleções da Nike, uma linha de móveis para a IKEA e um relógio Patek Philippe personalizado para o rapper Drake em uma janela de tempo muito curta.
Gemo Wong conta que durante o processo de criação dos modelos com a Nike e Jordan Brand, Abloh dificilmente frequentou a sede das marcas em Beaverton (EUA). Ele sempre está ao redor do globo, trocando feedbacks por WhatsApp. E isso tem tudo a ver com sua visão de criar um “código de desenho” e conseguir reproduzi-lo de forma quase que massificada. O próprio Abloh diz que não tem a intenção de fazer artigos tão escassos e sim passar seu código para um time capaz e confiável para criar e entregar seus projetos.
What’s next?
Virgil ainda parece não ter finalizado suas criações junto com a Nike. Além do projeto “The Ten” onde recriou dez modelos, ele já fez releituras de outros modelos icônicos da marca como o Dunk e o projeto “The 50” onde lançou uma linha de 50 tênis numerados quase idênticos onde o nº1 é branco, o nº50 é preto e os 48 no meio são a materialização da definição de “Off-White”. Assim como fez em outros modelos, Virgil também incentiva os donos dos pares a customizarem as peças.
Enfim, os recursos criativos de Virgil parece ainda estar longe do fim. Resta a nós admirar uma das maiores mentes criativas no mundo do desenho da nossa geração.
Recriando clássicos: Virgil Abloh e suas collabs com a Nike
Muito bem escrito!